Olá pessoal
É com imensa alegria que publicamos uma entrevista exclusiva com a psicóloga Janaína Cabello, a quem agradeço de coração pela atenção e pela concessão desta!
Janaina Cabello é ouvinte, formada em licenciatura plena e formação de psicólogo pela UNESP (Universidade Estadual Paulista), atua como psicóloga no Instituto Phala - Centro de Desenvolvimento para Surdos em Itatiba, São Paulo, onde nasceu e vive. Ela também cursa pós-graduação lato sensu em LIBRAS e Educação de Surdos, e é graduanda do curso de Pedagogia.
Pergunta 1: Como começou seu contato com a comunidade surda?
Resposta: Iniciei os estudos da LIBRAS em 2006, assim que me formei, e comecei a trabalhar no Instituto Phala – Centro de Desenvolvimento para Surdos em 2007.
Sempre sou questionada, principalmente por psicólogos que conheço, sobre como me interessei por estudar e atuar com a comunidade surda. Interessei-me pela cultura surda e por entender um pouco daquela misteriosa maneira de se comunicar quando, participando da coleta de dados para o doutorado de uma professora, durante minha graduação,descobri que seria necessário entrevistar jovens surdos. Como eu já havia aceitado o trabalho e não fazia a menor idéia de como isso seria possível, contamos com a interpretação realizada por profissionais ligados ao Centrinho de Bauru (HRAC/USP). As perguntas do questionário a ser aplicado foram filmadas e, durante a coleta, eu filmava as respostas dos jovens surdos. Meu trabalho foi realizado, mas eu sequer podia me apresentar ou perguntar o nome daqueles jovens!
Essa lacuna permaneceu durante a minha graduação, até porque na época ainda não era obrigatória a disciplina de LIBRAS nos cursos de licenciatura e não havia em nossa grade curricular um aprofundamento na área. Depois de formada, retornei da cidade de Bauru à Itatiba e encontrei um curso de extensão acadêmica em língua de sinais – foi como tudo começou.
Pergunta 2: Antes deste primeiro contato como era a sua visão sobre os surdos? O que pensava sobre eles?
Resposta: Antes desse primeiro contato com a comunidade surda eu não imaginava como poderia desenvolver um trabalho específico para os surdos, na verdade eu nunca havia me questionado até então em como interagir com a comunidade surda. Eu sabia sobre a restrição auditiva e sobre a existência de uma língua diferente, visual, mas não podia imaginar o desenvolvimento e a constituição de uma identidade lingüística própria, por exemplo. Realmente não havia “olhado” para os surdos até então.
Pergunta 3: Sua formação acadêmica em psicologia contemplou estudos sobre atendimento a pessoas com surdez?
Resposta: Não. Discutimos em uma disciplina aspectos relacionados aos diversos tipos de “deficiências” (visual, auditiva, intelectual, física), mas de uma maneira bastante superficial, sendo o enfoque bastante clínico e médico (a pessoa surda tem uma perda auditiva que pode variar de leve a profunda, existem aparelhos amplificadores, a possibilidade do implante coclear, etc). A graduação mostrou possibilidades de atuação nesse sentido, mas não aprofundamos com estudos específicos em nenhuma área, sendo que esses estudos tiveram que ser realizados posteriormente.
Pergunta 4: Como você chegou ao Instituto Phala e como é sua atuação naquele centro?
Resposta: Comecei a trabalhar na Instituição assim que conclui um ano de estudo em LIBRAS. Havia acabado de concluir um ano de extensão acadêmica em Língua de Sinais e estava muito interessada em atuar como psicóloga junto à comunidade surda, mesmo porque eu queria me certificar que realmente eu estava aprendendo a língua, então queria contato com os surdos. Uma fonoaudióloga que fez o curso junto comigo me indicou para a Instituição, que me contratou. Até então o Instituto nunca havia contratado uma psicóloga que soubesse um pouco de LIBRAS! Hoje, atuo no Instituto Phala em dois projetos: um, o “Projeto Passo a Passo”, que atende crianças e adolescentes surdos com diferentes níveis de perda, propõe um trabalho multidisciplinar com a atuação também de fonoaudióloga e assistente social. O trabalho consiste em acolher a família no momento do diagnóstico, esclarecer sobre quais procedimentos podem ser tomados para garantir o pleno desenvolvimento das potencialidades daquela criança surda, além de fazer outros encaminhamentos que sejam necessários. Em parceria com um instrutor surdo, oportunizamos com que a criança e sua família entrem em contato com a Língua de Sinais, bem como com outras famílias e crianças e jovens surdos, realizando um acompanhamento sistemático. Outro projeto que coordeno, o “Capacitação para a Inclusão”, foi aprovado esse ano, em janeiro de 2009, pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Itatiba e tem como objetivo a profissionalização de adolescentes surdos, entre 14 e 18 anos. O projeto prevê aulas de informática, rotinas administrativas, marketing pessoal, português e orientação profissional para que, no final do ano, possamos encaminhar esses adolescentes para estágios supervisionados em empresas parceiras. Todas as aulas contam com a presença de uma intérprete e os professores das disciplinas iniciarão no próximo mês o curso de LIBRAS oferecido pelo Instituto.
Pergunta 5: Como surgiu o Instituto? Como ele é financiado?
Resposta: O Instituto Phala é uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) e surgiu em dezembro de 1999. Foi fundado por um grupo de famílias que não encontraram na cidade atendimento específico e especializado para seus filhos com diagnóstico de surdez. As crianças até então não tinham contato com outros surdos ou com a LIBRAS e as famílias, com a ajuda de profissionais, mobilizaram-se para fundar uma Instituição que pudesse atender as crianças em suas especificidades. Atualmente o Instituto atende crianças e adolescentes surdos e suas famílias, moradores de Itatiba e região, e recebe apoio da prefeitura municipal de Itatiba, através de um repasse de verba que mantém as despesas fixas (como o aluguel, contas, manutenção predial); os projetos desenvolvidos são mantidos através de parcerias com a Prefeitura, sendo que temos projetos cadastrados na Secretaria de Ação Social e de Educação (que, depois de aprovarem nossa proposta de trabalho, fazem o repasse de verba a partir de uma prestação de contas e relatórios técnicos mensais). A partir de 2009 também estamos contando com o financiamento do Fundo Municipal do Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente para a realização do projeto de profissionalização. Para a complementação da verba necessária, contamos com a parceria com empresas privadas que nos apóiam, e com a doação de pessoas interessadas no voluntariado.
Pergunta 6: Que tipo de ajuda ou colaboração são bem vindas ao Instituto?
Resposta: O Instituto agradece qualquer tipo de colaboração, mas atualmente necessitamos de apoio financeiro para podermos investir na manutenção e segurança do prédio, na aquisição de materiais específicos e na remuneração dos profissionais técnicos, que hoje atuam com uma carga horária insuficiente para atender a toda demanda que procura pela Instituição. Materiais lúdicos e pedagógicos específicos também são muito bem vindos. Profissionais de diversas áreas e que atuem com surdez e língua de sinais podem contribuir conosco compartilhando experiências e metodologias, através da realização de palestras, workshops etc.
Pergunta 7: Na sua opinião, qual a importância de um profissional da psicologia saber se comunicar em LIBRAS? Qual a diferença de um paciente surdo que se comunica através da língua de sinais diretamente com o psicólogo daquele atendimento que é feito através de intérprete?
Resposta: Acredito que a LIBRAS é fundamental para o acompanhamento terapêutico do surdo. A questão do setting terapêutico, do sigilo e ética profissional, até mesmo o vínculo que se estabelece com o terapeuta fica comprometido quando há a necessidade do intérprete, mesmo que esse intérprete seja uma pessoa de confiança do surdo. Acredito que seja fundamental para o êxito do acompanhamento essa comunicação cliente-terapeuta, o cliente precisa se sentir “compreendido” em diferentes sentidos pelo terapeuta, e a primeira forma de se compreender alguém é compartilhando da língua com que essa pessoa se comunica. Sinto que as famílias também passam a confiar mais no meu trabalho quando percebem que posso me comunicar com o surdo sem precisar do intermédio de outra pessoa. É um momento muito íntimo na maioria das vezes, e se o surdo encontra alguém disposto a atendê-lo em sua língua, disposto a aprender com ele para poder compreender suas dificuldades, acredito que se sinta mais motivado e envolvido com o atendimento oferecido. Na minha opinião, atender o surdo em LIBRAS é respeitá-lo como sujeito surdo, como falante de outra língua e, a partir daí, é possível que ele te respeite também como profissional e que o processo caminhe em parceria.
Pergunta 8: Você é uma profissional em constante aperfeiçoamento. Qual a diferença que essa busca faz em seu trabalho?
Resposta: O aprofundamento teórico faz parte dos bastidores dessa atuação: a prática, sem o devido respaldo teórico, não se sustenta. Atualmente, estou cursando uma nova graduação, a de Pedagogia, motivada pela experiência com professores que trabalharam com crianças surdas e ouvintes na mesma sala de aula e relataram as imensas dificuldades em se relacionar com seus alunos surdos, bem como em desenvolver uma metodologia de ensino que contemplasse suas necessidades ou de desenvolver avaliações que pudessem balizar o processo de ensino. Também estou cursando pós-graduação lato sensu em LIBRAS e Educação de Surdos, para me aprofundar, entre outras questões, na língua do surdo. A LIBRAS está em constante movimento, é uma língua viva, uma língua que pertence a um grupo cultural, e acredito que seja necessária busca constante para acompanhar todas essas dinâmicas alterações e garantir um trabalho de qualidade.
Pergunta 9: Como os demais profissionais de sua área vêem o seu trabalho?
Resposta: Acredito que muitos psicólogos se debrucem em questões teóricas relacionadas a aspectos de aquisição de língua, desenvolvimento de linguagem e sua relação com o desenvolvimento cognitivo, porém não especificamente no caso da língua de sinais. Acredito também que muitos psicólogos, como eu durante a graduação, nunca tenham “olhado” para os surdos e suas necessidades, por isso encarem, em um primeiro momento, a minha atuação como “curiosa”. Penso que com a obrigatoriedade da LIBRAS na grade curricular dos cursos de licenciatura, mais psicólogos se sensibilizem com a atuação na área já durante a graduação.
Pergunta 10: Em fevereiro você teve a oportunidade de, juntamente com a pedagoga do Instituto Phala, apresentar em Cuba o trabalho realizado pelo Instituto, na Associação Nacional dos Surdos de Cuba. Como surgiu esse convite? Como foi a receptividade e o contato com uma cultura surda de outro país? (se quiser pode mandar fotos, materiais referentes, etc).
Resposta: Inicialmente havíamos inscrito o trabalho para um evento internacional que aconteceria em Cuba no ano passado, mas que teve que ser cancelado. Como nosso trabalho já havia sido aceito e nós manifestamos o interesse de participar mesmo sendo em um evento menor, fomos convidadas a apresentar o trabalho que desenvolvemos no Instituto Phala na Associação Nacional dos Surdos de Cuba. Fomos muito bem recebidas pela Associação e pudemos assistir aulas de língua de sinais cubana, ministradas por instrutores surdos. Também conhecemos outros profissionais que atuam com os surdos e com a formação dos intérpretes de língua de sinais e instrutores surdos de lá, como psicólogos e pedagogos. Percebemos como eles são cuidados em relação à formação cultural do intérprete, responsável por realizar todo esse intercâmbio cultural entre a cultura ouvinte e surda. Em Cuba eles ainda estão em processo de digitalização de materiais, sendo que a maioria dos materiais utilizados ainda são impressos. Como o acesso ao computador e à internet é bastante restrito, os recursos utilizados no Brasil, lá ainda estão em fase de implementação, adaptação e desenvolvimento (materiais digitais e o sistema de closed caption, por exemplo).
Pergunta 11: Pensando no trabalho que você desenvolve, envolvendo atendimento a pessoas com necessidades especiais, surdez, línguas de sinais, psicologia, inclusão, que bibliografias (artigos, livros) ou demais materiais (vídeos, filmes, sites) você recomenda para aqueles que se interessam nessas áreas?
Resposta: Acho importante, para quem quer entender um pouco sobre a identidade e a cultura surda, entender sobre o processo histórico da surdez. O livro “Vendo Vozes”, do Oliver Sacks (editora Companhia das Letras), pode ajudar nesse sentido e também traz outras referências. “A surdez-um olhar sobre as diferenças”, de Carlos Skliar (org. –Editora Mediação) também contribui com discussões importantes. Na minha atuação com crianças, tive o respaldo dos livros “A criança surda”, de Márcia Goldfeld e “Como brincam as crianças surdas”, de Daniele Nunes Henrique Silva, ambos da editora Plexus. Especificamente na área de Psicologia, atualmente, tenho estudado autores como Vygostky, Luria e Piaget, para entender como desenvolveram suas teorias sobre as bases psicológicas da aprendizagem e do desenvolvimento. Os filmes “Mr. Holland – Adorável Professor”, “...e o seu nome é Jonas”, e “Nell” trazem discussões interessantes, bem como o documentário “Som e Fúria”.
Pergunta 12: Como nossos leitores podem obter mais informações sobre o Instituto Phala? (e-mail, site, endereço, telefone, etc...)
Resposta: O Instituto Phala está localizado na cidade de Itatiba, interior do estado de São Paulo, e pode ser contatado pelo telefone (11) 4538 2799 ou pelos e-mails institutophala@gmail.com ou contato@institutophala.com.br . Os interessados podem conhecer melhor a Instituição e nossas ações através do site http://www.institutophala.com.br/
Pergunta 13: Como os interessados podem entrar em contato com você?
Resposta: Através dos contatos do Instituto Phala ou através de meu e-mail pessoal cabello.jana@gmail.com . Terei o maior prazer em conhecer novos profissionais, familiares, surdos, enfim, pessoas que queiram contribuir com a minha atuação!
Por favor, deixe uma mensagem para os leitores do Blog Vendo Vozes...
Mensagem: Em primeiro lugar, gostaria de agradecer muito pela oportunidade de falar um pouco sobre a minha atuação e sobre a Instituição onde trabalho. É um imenso prazer e também uma grande responsabilidade poder dar um depoimento falando sobre minha atuação. Ainda tenho importantes passos a dar e muitas coisas para aprender. Sinto-me tateando um universo ainda desconhecido, imenso. Questiono-me se não sou inconseqüente em alguns momentos de me aventurar nesse universo sem ter o conhecimento necessário para tal. Mas nesses momentos em que minha prática se “apequeniza” diante dos desafios, os surdos com quem convivo e os outros que tenho conhecido nessa jornada me fazem acreditar que minha prática é possível e pertinente. Com certeza, tudo o que penso e sei sobre surdez, surdos, língua de sinais, é fruto da convivência com eles e da imensa paciência que todos eles têm em compartilhar comigo sua cultura, língua e amizade. Portanto, gostaria de aproveitar para agradecer a todos os surdos e profissionais que têm me acompanhado. Também gostaria de aproveitar para convidar os psicólogos a conhecerem melhor os surdos e as possibilidades (maravilhosas) de atuação com eles.
Obrigada!
Muito obrigada, Janaina, pelo seu tempo e atenção conosco. É uma grande alegria poder divulgar seu trabalho e contar com sua colaboração em nosso Blog Vendo Vozes.
Atenciosamente,Vanessa Dagostim Pires.
Na foto abaixo, alunos surdos com o instrutor Leonel, no centro. (Associação Nacional de Surdos de Cuba)