Escola Bilíngue para Surdos foi o tema da audiência pública que lotou o Teatro Dante Barone na manha dessa segunda-feira (4). Antes do início do evento, a plateia estava animada, mas pouco se ouvia. É que o principal meio de comunicação eram os gestos, a forma de manifestação da Língua Brasileira de Sinais (Libras). E é isso que os educadores, professores e estudantes presentes defendem: um espaço em que a Libras seja a primeira língua e o português escrito a segunda.
O deputado Carlos Gomes (PRB) foi o proponente da audiência, realizada pela Comissão de Educação, Cultura, Desporto, Ciência e Tecnologia da Assembleia. Ele foi procurado pelo movimento nacional em defesa da educação e cultura surda, cuja principal entidade integrante é a Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis). O parlamentar está preocupado com a dificuldade dos surdos de ingressarem e permanecerem na escola regular. “Me senti envergonhado por não entender a linguagem de sinais, mas vou me esforçar para aprender. Hoje, como estou minoria, consegui compreender como se sente um aluno surdo”, disse o parlamentar.
O diretor regional da Feneis, Francisco Eduardo da Rocha, defendeu mais integração entre as escolas para surdos no Estado. “Queremos saber o que está acontecendo, trocar experiências.” Segundo ele, não há uma política para essas instituições de ensino do RS. Ele comemorou a inclusão da representação dos surdos no Fórum Estadual de Educação, mas reivindica que a Secretaria da Educação crie um grupo de trabalho para levar as discussões adiante.
Movimento de surdos é nacional
Uma carta denúncia entregue nos Ministérios Públicos de todo o país resultou na abertura de um inquérito civil público sobre a questão da educação para surdos no país. O professor Cláudio Henrique Nunes Mourão, o Cacau, explicou que esse instrumento funciona como uma espécie de Comissão Parlamentar de Inquérito, ouvindo as partes envolvidas. O professor acredita que são necessárias mudanças na política do Ministério da Educação, que estaria fechando as escolas bilíngues, e convocou todos a participarem de um movimento em defesa dos direitos dos surdos, como fazem os gays e os negros.
O movimento dos surdos já impediu o fechamento de escolas bilíngues em todo o país e conta com a adesão de entidades como a Apae e de personalidades, como a atriz Marieta Severo, que tem uma irmã surda. Uma manifestação em Brasília, no ano passado, reuniu quatro mil surdos e apoiadores contra as políticas do Ministério da Educação, que acredita na inclusão dos surdos no ensino regular. “E não existe uma lei que garanta a manutenção das escolas bilíngues”, reclamou Cacau. No RS, foram fechadas classes para surdos em quatro cidades no último ano.
A importância da academia e do poder público
O papel da universidade e da pesquisa acadêmica, como fundamental para alimentar o debate político e a mobilização em prol da escola bilíngue, foi o aspecto trazido pela professora Adriana Thoma, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Ela contou que havia muitas hipóteses sobre a educação para surdos. Então sete instituições de ensino superior uniram-se para formar um grupo de pesquisa sobre o tema no RS. Foi realizado um mapeamento do Estado sobre as condições das matrículas de surdos e o tipo de turma em que estes se encontravam. “Apesar de algumas secretarias municipais de educação não terem dado retorno, temos dados significativos para afirmar que a maioria dos surdos que chegam à universidade frequentaram escolas específicas, pois apresentaram um melhor desenvolvimento linguístico e educacional.”
Adriana relatou que quando o surdo está entre alunos ouvintes e sem muitos recursos a evasão é enorme. Outra situação são os alunos nômades, que vão de cidade em cidade em busca de melhores condições de escolarização. Ela contou ainda a história de uma professora que atendia turmas regulares de Educação para Jovens e Adultos apenas uma vez por semana em três cidades diferentes. “Os alunos recebiam apenas uma fatia do conhecimento trabalhado.”
A experiência de Cuba é um exemplo para Adriana. Logo que a criança é diagnosticada como surda, uma pessoa fluente na língua faz visitas em casa e trabalha com toda a família. Isso até os três anos de idade. Dos quatro aos cinco anos, ela frequenta uma escola de educação bilíngue e na fase seguinte, pode-se optar pela escolarização bilíngue ou inclusiva.
“No Brasil, as crianças que são dignosticadas como surdas não recebem visitas em casa. É como um atendimento clínico, no qual a criança é quem se desloca”, explicou Adriana. Para a professora, é necessário investir mais na educação bilíngue com foco na educação infantil. “O resultado disso é que essas crianças chegam na escola sem o conhecimento línguístico adequado para que possam apreender os conteúdos.”
A professora Patricia Rezende concentrou seu depoimento na crítica à política de inclusão que está sendo desenvolvida pelo Ministério da Educação. Ela acredita que é preciso valorizar a língua dos surdos. “Nas comunidades indígenas, o português também é a segunda língua.”
Ela é contra transformar as escolas bilíngues em centros de Atendimento Educacional Especializado (AEE) como o MEC estaria propondo. “A comunidade linguística tem direito de escolha de como será sua educação. É preciso contato para desenvolvimento linguístico e a partir da escola cria-se uma comunidade. Não é o governo que vai mandar que eu seja incluído ou não.”
O Brasil ratificou, em 2009, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU de Nova Iorque, que garantiria a construção da identidade dos surdos. E Patrícia cobra do governo federal a aplicação do acordo que tem força de lei.
Patrícia comemorou duas mudanças no Plano Nacional de Educação, que deve ser aprovado pelo Congresso em breve. A primeira garante a educação bilíngue tendo a Libras como primeira língua e a segunda, que sejam oferecidos professores bilíngues e não apenas intérpretes.
O deputado Adão Villaverde (PT) trouxe o apoio de sua bancada ao movimento. “É diferente quando as concepções são testadas na prática”, alertou. Ele defendeu uma política de inclusão total, calcada na formação e qualificação dos professores. E criticou a cultura da exclusão que muitas vezes começa no próprio poder público.
Experiências de vida
As crianças surdas presentes no Dante Barone foram convocadas pelo professor Cristian Alexandre Strak para subirem ao palco. “Os surdos não podem ter medo de perder o emprego. Eu poderia dizer que era a favor da inclusão para trabalhar numa Atandimento Educacional Especializado, mas o meu amor é por essas crianças e pela língua de sinais. E o pequeno Jackson, de quatro anos, deixou seu recado, que emocionou a todos. “Eu não quero inclusão, eu quero ter o direito de estudar com surdos.”
O professor Roger Prestes, integrante do Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência, fez uma fala rápida, mas contundente. “Nada sobre nós sem nós”, bradou. A crítica é dirigida aos gestores responsáveis pela aplicação de políticas públicas que não estariam levando em conta as reivindicações dos surdos.
Já o vice-presidente da Feneis, Carlos Góes, resgatou que antigamente os surdos não podiam casar, nem ter casa própria no país. “Tenho uma esposa, dois filhos e duas noras surdos e a inclusão não pode nos oprimir.” Ele comemorou as novas leis, como a que oficializou a língua de sinais no Estado em 1999, iniciativa pioneira no Brasil, mas diz que é preciso continuar lutando e destacou os trabalhadores e idosos surdos. “Me sentia um idiota quando era criança porque tinha que falar. A cultura da inclusão é a da oralização.”
A situação do RS
“A comunidade surda é titular de direitos e deve buscá-los junto aos órgãos competentes, seja administrativa ou judicialmente”, afirmou o representante da Procuradoria-geral do Estado, Alfredo Simon, integrante da Comissão de Direitos Humanos do órgão. Ele salientou que a Procuradoria é responsável pelo controle da legalidade na administração pública e que está aberta para demandas da comunidade surda.
Ana Paula Jung, da Escola Estadual Especial Keli Meisi Machado, de Novo Hamburgo, está preocupada com a situação da educação para surdos no Estado. “Não há um posicionamento legal da Secretaria da Educação e as políticas estão de acordo com as do Ministério. Estamos há anos sem formação, sem subsídio e os professores estão sendo transformados em intérpretes.” A professora cobrou uma diretriz clara do Estado para evitar o desmonte das 12 instituições com ensino bilíngue no RS.
Encaminhamentos
O deputado Carlos Gomes sistematizou as principais reivindicações e afirmou que vai levá-las ao governador Tarso Genro e ao seu secretariado. Confira os principais pontos:
- Levantamento no número de surdos, como está o atendimento nas escolas, situação dos professores, níveis de evasão no Ensino Médio e Ensino para jovens e Adultos;
- Grupo de trabalho temático para sistematizar discussões mundiais, no Brasil e no Estado;
- Organização e normatização da educação para surdos;
- Especificidade das crianças surdas;
- Curso de Libras como parte obrigatória da formação de professores;
- Políticas públicas de saúde;
- Promoção de uma sociedade mais igualitária
O parlamentar anunciou que irá realizar uma audiência pública para tratar da situação do surdo no mercado de trabalho, ainda sem data definida.
Presenças
O senador Paulo Paim (PT), que prestigiou rapidamente o evento, transmitiu a Carlos Gomes seu apoio ao movimento dos surdos no Senado. Também participaram da audiência a presidente da Comissão de Educação da AL, deputada Juliana Brizola (PDT), e os deputados Mano Changes (PP) e Raul Pont (PT).