Olá
pessoal, tudo bem?
Perdoem
a demora por novas postagens, mas estou bastante envolvida com a
escrita da tese e o meu trabalho.
Bem,
o texto que publico hoje é da autoria de Jônatha Bittencourt,
estudante de Jornalismo (UFRGS), âncora da Bandnews FM Porto Alegre
e repórter da Rádio Bandeirantes RS. O texto foi primeiramente
publicado no blog Três Gotinhas, da minha amiga Mariana, que foi
entrevistada para a reportagem realizada. Gentilmente os dois me
cederam o texto, para publicá-lo também aqui no blog.
Visões
de mundo
Jônatha
Bittencourt
Conduzidos
por uma bengala, dão passos para além da escuridão. Os barulhos do
ambiente são como faca de dois gumes: ora ajudam, ora atrapalham
quem deles é dependente.
Dados
divulgados pela Organização Mundial da Saúde apontam que a cada 5
segundos uma pessoa se torna cega no mundo. Os números também
indicam a existência de 40 a 45 milhões de casos; 90% deles em
países emergentes ou subdesenvolvidos; e 80% poderiam ser evitados.
Segundo o Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística, de 2010, mais de 35 milhões de brasileiros têm algum
tipo de deficiência visual. Dos números apontados, aproximadamente
meio milhão de pessoas são totalmente incapazes de enxergar. Em
Porto Alegre, os números indicam que pelo menos seis mil pessoas têm
cegueira total.
Apesar
do índice considerável de deficientes visuais ao redor do mundo, a
impressão dominante é de que não existe uma consensual preocupação
com o bem-estar dos cidadãos que vivem em tais condições. Quando
surge em meio à política, a acessibilidade parece apenas uma “pauta
positiva” diante das denúncias cada vez mais recorrentes. E
contando com esse panorama, onde alguns cegos ainda ousam sair às
ruas, outros resistem entre quatro paredes.
Rua Braille, número 480. Esse é o endereço da Casa Lar do Cego Idoso, instalada no bairro Rubem Berta, na zona norte de Porto Alegre. No local, cerca de 40 pessoas com mais de 60 anos de idade são acolhidas. Dentre as pessoas que se dedicam a levar assistência e conforto aos moradores, estão Joanete e Niderauer.
Na imagem acima, o autor do texto, Jônatha Bittencourt, em frente à Casa Lar do Cego Idoso
Na foto, um jovem magro, de camisa xadrez preta, calça jeans e uma pasta cuja alça está atravessada em diagonal em seu peito, segura um objeto de papel em sua mão direita. Ele está no centro da foto, em primeiro plano. Atrás, há um prédio cor de rosa e branco, com os letreiros em cor preta "Casa lar do cego idoso". Na entrada do prédio há uma calçada de concreto, e à direita do jovem há um caminho de piso tátil até a porta de entrada do prédio.
Rua Braille, número 480. Esse é o endereço da Casa Lar do Cego Idoso, instalada no bairro Rubem Berta, na zona norte de Porto Alegre. No local, cerca de 40 pessoas com mais de 60 anos de idade são acolhidas. Dentre as pessoas que se dedicam a levar assistência e conforto aos moradores, estão Joanete e Niderauer.
História
Viva
Joanete
Pretto Zanandrea, 58 anos, tesoureira. Niderauer Pacheco de Quadros,
87 anos, tesoureiro. Na sala do departamento, no térreo da casa de
dois andares, eles falam do trabalho com muito entusiasmo. Quando um
para, o outro continua dando cada vez mais fôlego à conversa, que
compete com o barulho das obras que estão sendo feitas no local –
recém haviam chegado recursos do governo municipal.
A
história do estabelecimento teve início há 40 anos, antes mesmo da
sua fundação. Em maio de 1973, um grupo de cegos descontentes com a
política de atendimento aos deficientes visuais no Rio Grande do Sul
e com a falta de atividades esportivas para eles resolveram fundar a
Sociedade Esportiva Louis Braille (SELB). “Nós tivemos diversos
troféus”, destaca Niderauer. “Levamos vários títulos de
futebol de salão e atletismo.”
Dez
anos depois, a SELB passou a se chamar SOLB, de Sociedade Louis
Braille. Perdeu a letra E, de Esportiva, que justamente motivou sua
criação. Mal sabiam o que lhes esperava. Uma longa jornada na área
social se estenderia pela frente.
Com
a formação de um novo estatuto, em 1998, o nome da entidade mudaria
para Associação de Cegos Louis Braille (ACELB). Cientes de que não
seria fácil, mas que era necessário trabalhar mais pesado por uma
rede de serviços que atendesse pessoas cegas idosas em situação de
vulnerabilidade social, resolveram criar um setor responsável por
essas demandas. Em 2000, foi inaugurada a Casa Lar do Cego Idoso,
contando, inicialmente, com 12 moradores.
Joanete
relata que chegou até a instituição por meio do marido. Segundo
ela, por ele ser deficiente visual, os círculos sociais do casal
passaram a ser, principalmente, pessoas cegas. Considerando o quadro
em que se encontrava a militância pelos direitos das pessoas com
deficiência, Joanete percebeu a necessidade de se engajar no
projeto. Hoje, só lamenta pela falta de circular mais entre os
moradores da casa, como fazia antigamente. “Passo mais tempo aqui,
na sala da tesouraria, só lidando com números. Sinto falta lá de
cima”, diz Joanete.
Enquanto
ela conclui seu raciocínio, dá para notar que Niderauer já aguarda
a vez de falar. Ele foi um dos fundadores da associação. Tem muita
história para contar.
“Sou
aposentado. Fiz parte da diretoria de uma cooperativa de crédito.
Naquela época, eu administrava a parte de empréstimos e cheguei a
colaborar com cegos carentes. Além disso, sou membro, há muito
tempo, da Irmandade São Miguel e Almas. Essa organização auxiliou
desde o início a Associação de Cegos Louis Braille.”
Os
dois destacam que, nesses 13 anos de funcionamento do asilo, passaram
por muitas experiências. Uma delas insiste em se repetir. A
indiferença parece resistir ao tempo.
“Algumas
pessoas têm familiares aqui. Às vezes, ligamos para avisar que
estão no hospital porque passaram mal e que precisam ser visitados,
mas recebemos como resposta: “Eu não vou atrás dele, já está na
hora de morrer mesmo”, desabafa Joanete. “Infelizmente, alguns
chegam ao ponto de dizer isso. São pessoas que abandonaram
completamente seus parentes.”
Diante
de situações como essa, o desânimo passa a ser um dos maiores
inimigos dos que moram na casa. O sentimento, inclusive, toma uma
certa vantagem por não existir um serviço de acompanhamento
psicológico no local. “Eu acredito que se tivéssemos uma
psicóloga aqui, ela teria muito trabalho”, diz Joanete, “muitas
vezes não falam, mas no fundo estão precisando”. As dificuldades
para a contratação de uma psicóloga decorrem das verbas
governamentais, que “estão mais direcionadas às benfeitorias do
lugar”, como destaca Niderauer.
Em
meio à conversa com os dois tesoureiros, chega à porta um homem de
avançada idade vestido ao estilo camponês, segurando nas mãos uma
sacola com veneno para formigas.
Um
Jardineiro Revolucionário
Na imagem acima, Sr. Adão Alcides Zanandrea
Um senhor, com chapéu preto e roupa cinza está posando para a foto, de frente para a câmera, no canto esquerdo da imagem. Ele segura uma pequena sacola branca. Atrás dele, uma grande estante de madeira escura, antiga, ocupa todo o fundo da foto. Na estante há muitos livros e porta-retratos.
É
o marido de Joanete, Adão Alcides Zanandrea, 75 anos, ex-presidente
da ACELB e, atualmente, conselheiro estadual da Saúde e dos Direitos
das Pessoas Deficientes. Ele só enxerga com o olho direito – e
apenas 9%.
“Era
o presidente e o jardineiro da casa”, interrompe Niderauer fazendo
uma piada. Os três caem na gargalhada. Adão aproveita a brincadeira
do amigo e já faz a seguinte recomendação, todo orgulhoso: “Pois
vá ver minhas bananeiras no pátio! Certo dia meu sogro me disse:
“Onde não dá geada, o colono planta três pés de bananeira e,
após três anos, vai colher bananas que durarão um bom tempo para
uma família de cinco pessoas”. Há dois anos, no mês de março,
colhemos 70 cachos!” A esposa e seu colega tesoureiro não
contestaram. Ele parece ter aprendido, realmente, a lição do sogro.
Mas
ele é mais que um jardineiro.
Mesmo
enfrentando dificuldades por causa da visão, resolveu cursar
Direito. Registrava as aulas em um gravador de som, depois escutava
as fitas. Caso não tivesse como gravar em um determinado dia, pedia
emprestado o caderno dos colegas. Em casa, Joanete lia e assim ele
estudava.
“Eu
gravava tudo em áudio e até traduzia para o Braille. Mas nunca
comprei livros,” comenta Adão. Na época, adquirir obras em
Braille custava muito caro – mais do que atualmente.
Depois
da colação de grau, deu início à carreira de advogado. Com o
passar dos anos, começou a dar aulas e a trabalhar no Ministério do
Trabalho, atendendo na área previdenciária. Ainda hoje, Adão
Zanandrea recebe homenagens pela sua militância a favor dos
deficientes visuais. Pelo amplo conhecimento jurídico, foi convidado
diversas vezes a Brasília, Rio de Janeiro e outras cidades
brasileiras para colaborar no planejamento de uma legislação que
contemplasse as questões de acessibilidade e direitos humanos em
torno da deficiência visual. “Eu ajudei a escrever essas leis.
Tenho até hoje os documentos de agradecimento lá do Rio de
Janeiro”, diz orgulhosamente.
Seu
antigo local de trabalho em Porto Alegre, a agência do Sistema
Nacional de Emprego (SINE), também foi palco de revolução. Lá,
durante 18 anos, atuou como o único deficiente visual, passando de
estagiário a professor. “Até que um dia nós, mais de duzentos
deficientes na cidade, entramos no Palácio Piratini e exigimos do
governador os nossos direitos.”
Em
1981, no Ano Internacional das Pessoas Deficientes, o então ministro
da Previdência do país, Jair Soares, anunciou sua candidatura ao
governo do estado do Rio Grande do Sul. Percebendo que o governador
gaúcho do momento, José Augusto Amaral de Souza, encontrava-se em
risco e disposto a abrir concessões para se manter no cargo, os
manifestantes aproveitaram a oportunidade para protestar. Naquele
dia, foram prometidas centenas de vagas para deficientes em todo o
estado.
“Eu
estava a dois palmos do governador. Lembro-me de ouvir dizendo:
‘Vamos começar a contratar. Estou determinando!’ Chegaram a
fazer reclamações contra alguns secretários, mas o governador
Amaral respondeu: ‘Secretários são pagos para me ajudar
administrar o Estado. Contratem! Estou determinando!’”
Antes
de sair para o pátio com sua sacola, despediu-se dizendo: “Na tua
reportagem, não se esquece de dizer para as pessoas virem conhecer
esse lugar e tomarem conhecimento do que uma obra assistencial de
promoção humana pode fazer”.
Ao
sair da tesouraria, meu próximo passo foi subir ao primeiro andar,
acompanhado por Joanete. No local, além de dormitórios e de um
“fumódromo”, existe uma sala com assentos onde parte dos idosos
gosta de passar o dia.
Solidão
e Resistência
Dona Catarina segurando a mão de Jônatha
Na foto acima, uma senhora idosa, com cabelos grisalhos e um gorro de lã cinza segura, com as duas mãos, a mão de uma terceira pessoa. Reconhecemos que é de Jônatha, o autor do texto, porque é possível visualizar a manga xadrez de sua camisa. Os olhos da idosa estão fechados, e ela está com a cabeça levemente inclinada para a esquerda.
Sentada
em uma das poltronas, Catarina Gonçalves de Oliveira, de 76 anos, se
concentra em seu crochê colorido. Apesar da cegueira total, faz a
peça de roupa com as próprias mãos. Peço licença e um pouco do
seu tempo. Ela retribui com alegria à ideia de ser entrevistada.
Dona Catarina aproveita para pegar uma das minhas mãos e,
esquentando-a, “segurar” a companhia por mais tempo.
Ela
explica que o crochê faz parte da sua vida há anos e é uma das
formas de vencer a depressão. “Eu já fazia isso quando enxergava
um pouco. E agora não posso ficar mais parada, meu anjo. Sinto um
sufoco e um mal estar quando não faço nada. A gente fica tão
desnorteada quando perde a visão…”
“Tudo
começou quando eu era pequenininha, com quatro anos”, explica,
“estava com meu irmão, que era muito arteiro na época. Um militar
que estava passeando com seu cavalo gordo deixou cair um cartucho de
dinamite perto de nós. Curioso, meu irmão foi pegar a bomba no
chão. Ela explodiu. O cavalo levou um susto tão grande que levaram
umas duas semanas para achá-lo”.
O
acidente fez com que dona Catarina, ainda menina, perdesse 95% da
visão.
“Depois
de um tempo, fui diagnosticada com catarata. Precisei ir à Santa
Casa. Daí chegou o doutor mais experiente e me disse: ‘Catarina,
tem que operar com urgência senão vai perder as vistas!’ O
problema é que fizeram com anestesia geral, quando era para ser
local. Antes eu pelo menos enxergava a luz, os degraus das escadas…”
Após
essas palavras, dona Catarina voltou a contar sua história do início
mais umas três vezes. Talvez pela idade. Resolvi não questioná-la
mais sobre as causas da cegueira.
“Tenho
dois filhos, faz tempo que não me visitam. O Daniel não vem há
mais de um ano.” Ela parece ter criado uma espécie de resistência
a esse sofrimento. Apesar de fazer questão de dizer que não recebe
visitas, destaca: “Mas nem conto mais com isso, não dou bola. Eles
têm a vida deles. Precisamos pensar em nós mesmos, não nos
parentes, e esperar a morte chegar, né?” Ela ri.
De
repente cegos
Na
mesma sala onde dona Catarina se dedica ao seu crochê, Osvaldo
Ferraz escuta televisão. “Não posso ler ou assistir à TV, então
só ouço notícias e futebol”, explica. O homem de 80 anos de
idade perdeu completamente a visão há 10 anos.
“Se
eu mais ou menos imaginasse”, suspira, “não teria deixado
acontecer. Deitei enxergando e acordei cego”. Tudo por causa de um
glaucoma, doença que se caracteriza pelo aumento gradual da pressão
dentro dos olhos. Com isso, o nervo ótico, responsável por
transportar as sensações visuais para o cérebro, tende a sofrer
uma lesão. No caso de Osvaldo, total.
Por
mais que receba, em média, duas visitas por mês, Osvaldo Ferraz
sente no peito a angústia de viver no mundo da escuridão. “Isso
deprime a gente”, afirma. As amizades dentro de casa servem de
estímulo para o dia-a-dia. “Conhece o Niderauer? Andando com ele,
tá com tudo…”
Depois
de conhecer Osvaldo, fui conduzido por Joanete a um dos quartos do
asilo. Em uma cama estava um homem que, em plena juventude, foi
desafiado por uma raríssima doença chamada Paget. Os especialistas
afirmam que apenas 5% a 30% dos casos são sintomáticos. Os demais
pacientes só descobrem a doença durante exames mais específicos
ou, como no caso de Alenir Moraes da Silva, de 61 anos, através das
consequências.
Por
volta dos 20 anos de idade, a vida de Alenir mudou drasticamente.
“Eu
era bastante ativo na época, trabalhava no campo”, afirmou. “A
doença de Paget apareceu de repente e eu perdi a visão. Foi
bastante difícil. Ninguém sabia de nada, como lidar ou não com
isso.”
Ainda
assim, resolveu seguir em frente. “Procurei minha independência”,
declara. Além de trabalhar em empresas da capital, participou da
direção de algumas entidades que apoiam deficientes visuais. Em
Porto Alegre, viveu a dura realidade de uma cidade que, como a
maioria ao redor do mundo, ainda está distante do ideal quando se
trata de acessibilidade.
“A
cidade não está preparada. Na verdade, uma sociedade preparada para
conviver e até entender a dinâmica de um deficiente visual não
existe no mundo inteiro, viu? As barreiras arquitetônicas são
imensas.”
Uma
declaração que, por vezes, parece ser ignorada. Fazendo o uso
contextualizado do conhecido ditado popular, a impressão que fica é
que onde há cego, quem enxerga é rei. Mais do que isso, quem
enxerga dita as regras de como ver o mundo.
Embora
exista a imposição de limites que deveriam ser repensados, Alenir
Moraes da Silva declara viver “uma vida normal. Ela já é feita de
altos e baixos, de coisas boas e ruins. Ser cego é apenas um
detalhe. Mesmo assim, a pessoa pode ser capaz de se adaptar e de se
esquecer, muitas vezes, da própria condição de cega”, conclui.
Alenir
foi o último morador que conheci na Casa Lar do Cego Idoso – que
prometi a mim mesmo visitar mais vezes. Antes de ir embora, ainda
passei pelo jardim de Adão.
Saí
decidido a conhecer mais pessoas e lições de vida.
Construindo Rampas
Esta
jovem de 27 anos tem deficiência visual parcial (baixa visão) desde
o nascimento. Enxerga apenas 10% e como se estivesse usando um
binóculo – não tem a percepção lateral, periférica. Para
começar a ver algo, precisa estar a, no máximo, dois metros de
distância, quanto mais iluminação melhor. No computador, utiliza
fontes que variam de 22 a 24 pontos. Além disso, é jornalista
formada.
Você
deve estar imaginando: “Essa pessoa deve ser uma grande
profissional de rádio, afinal de contas, deficientes visuais não
desenvolvem com facilidade os outros sentidos? Trabalhar com a
audição deve ser o seu forte!” Deixe-se surpreender: estamos nos
referindo a uma apresentadora de televisão. Seu nome é Mariana
Baierle, jornalista pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUCRS) e mestre em Letras pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS).
“Nunca
imaginei que seria telejornalista, era uma das áreas pelas quais eu
menos me interessava na época da universidade. Até que um dia
prestei um concurso temporário para a TVE-RS e, inclusive, passei no
acesso universal. Fiquei toda orgulhosa por ter me classificado.
Quando entrei, houve certa resistência, não sabiam o que fazer
comigo.”
Hoje,
Mariana é repórter e apresentadora do quadro Acessibilidade dentro
do programa Cidadania. Apesar das dificuldades enfrentadas
inicialmente, com o tempo passou a usar algumas situações a seu
favor. Em filmagens na rua, por exemplo, consegue se concentrar ao se
dirigir à câmera. Já que não enxerga perifericamente, não se
preocupa se alguém a está assistindo.
Mas
nem tudo é motivo de tranquilidade. O luto e a contestação são
“pautas” permanentes na vida Mariana. Apesar de viver em um país
onde os direitos humanos são, supostamente, prioridade, ela acredita
que a questão ainda é tratada com superficialidade.
“Gosto
de fazer uso de uma frase da publicitária Juliana Carvalho,
cadeirante: ‘É preciso construir rampas na cabeça das pessoas’.
E é bem isso, mudar um pensamento, um comportamento. Não é só a
rampa que vai dar acesso, mas as pessoas, a forma de atender e lidar
com naturalidade. Alguns ainda têm aquela ideia: ‘Nossa! Aquele é
deficiente, está vendo? Está vindo ao teatro, ao cinema, como é
que pode? Está saindo de casa!’ Ainda existe, infelizmente, essa
resistência. Por isso existe a necessidade de ‘construir rampas’
num sentido bem mais amplo, de transformação cultural.”
Dentre
vários preconceitos que deveriam ser colocados em xeque nos nossos
dias, um ainda intriga muita gente: “O que esse tipo de pessoa vai
fazer em Paris se não pode ver a Torre Eiffel? Qual a importância
de ir a Roma sem enxergar o Coliseu?” Diante desse tipo de
pensamento, Mariana contra-ataca: “Não é bem assim! O que vale é
a sensação de interagir com as pessoas, caminhar pela cidade, tirar
fotos…” Tirar fotos? “Sim, vão tirar, querer uma recordação.
Depois os outros descrevem as imagens coletadas! Isso acontece por
meio da audiodescrição, um método de trazer acessibilidade nessas
situações.”
Confesso
que fiquei um tanto surpreso com essa ferramenta de “visualização”.
Vale a pena destacar que a jornalista Mariana Baierle tem um blog
chamado Três Gotinhas (www.tresgotinhas.com.br). Na sua página
pessoal, ela explica o porquê do nome: “Acho que três gotinhas é
uma boa conta, considerando que às vezes posso colocar a mais ou a
menos (e não ficarei sabendo disso). Então a tentativa de sempre
colocar três gotinhas me parece uma boa média.” Ali, Mariana
registra as mais diversas experiências vivenciadas, que vão desde a
simples imaginações e conversas a grandes viagens.
Falando
em viagens…
Nem
só olhos visualizam
“Estou
a menos de uma semana na Alemanha e já são tantas as coisas para
contar que fica difícil entrar em detalhes, mas posso dizer que
foram, por enquanto, os dias mais difíceis da minha vida.”
(16/09/2012)
O
autor dessas palavras se chama Lucas Radaelli, um jovem de 21 anos de
idade, estudante de Ciências da Computação na Universidade Federal
do Paraná. Assim como Mariana, ele tem um blog na internet
(www.lucasradaelli.com) e é deficiente visual. No entanto, é cego.
Para chegar à Alemanha, Lucas precisou superar algumas barreiras
durante os anos de estudos. Ele relata que a partir da terceira
série, passou a estudar mais de forma digital. Os livros eram
escaneados pelos pais e “lidos” através de softwares em seu
computador. O Braille servia como ferramenta apoio.
Já
na universidade, participou de um processo seletivo por uma única
bolsa destinada ao setor de Exatas, que englobava Ciências da
Computação, Tecnologia da Informação, Física, Matemática, as
engenharias etc. Passou por uma série de provas, como de idioma do
país de destino, rendimento acadêmico, histórico escolar,
iniciação científica e atividades extracurriculares. No final das
contas, foi selecionado. Embarcou para a Alemanha. “O início foi
mais difícil. Como eu não tinha amigos ainda ficava sem ajuda para
algumas coisas. Precisei ultrapassar os meus limites para resolver
esses problemas”, comenta. Além de visitar o país germânico com
fins acadêmicos, Lucas revela sua paixão por viagens e destaca
algumas das suas memórias. “Sempre pesquiso bastante para onde
quero ir. Já fiz viagens frustrantes, onde só havia apelo visual.
Mas já viajei para lugares dos quais gostei muito, como Dublin, na
Irlanda. Havia muitos pubs com música tradicional. Lógico que a
visão deve ser bastante importante, mas ainda existe a questão da
culinária, dá para sentir o ambiente. Quando fui ao Museu
Britânico, em Londres, passei por uma experiência muito legal
porque era permitido tocar em várias estátuas egípcias. Nossa,
visualizei várias estátuas.”
Já
que conversamos sobre “aparências”, resolvi questioná-lo sobre
conceitos de estética, beleza. Lucas destacou que faz uso de outros
padrões. “Como aconteceu quando um amigo me mostrou dois celulares
e perguntou qual deles eu havia gostado mais. Respondi indicando um.
Ele quis saber o porquê. Falei que preferi pela traseira de metal
porque me passava uma sensação melhor por ser gelado…”
“Eu
não tenho noção do que é uma cor. Então discussão sobre cores
de pele é algo que não entra na minha cabeça”, ressalta. “Certa
vez aconteceu uma situação engraçada envolvendo um amigo – eu
acho que é negro, não tenho certeza. Ele estava bem ranzinza na
parte da manhã e eu disse que ele estava parecendo muito alemão
naquele dia. Todos meus amigos deram risada. Era bem no começo do
nosso convívio. Por um tempo o chamamos de alemão.”
Assim
encerrei a conversa, ciente de que para Lucas, preto e branco eram a
mesma coisa.