3 de set. de 2013

Visões de Mundo


Olá pessoal, tudo bem?
Perdoem a demora por novas postagens, mas estou bastante envolvida com a escrita da tese e o meu trabalho.

Bem, o texto que publico hoje é da autoria de Jônatha Bittencourt, estudante de Jornalismo (UFRGS), âncora da Bandnews FM Porto Alegre e repórter da Rádio Bandeirantes RS. O texto foi primeiramente publicado no blog Três Gotinhas, da minha amiga Mariana, que foi entrevistada para a reportagem realizada. Gentilmente os dois me cederam o texto, para publicá-lo também aqui no blog.


Visões de mundo
Jônatha Bittencourt
Conduzidos por uma bengala, dão passos para além da escuridão. Os barulhos do ambiente são como faca de dois gumes: ora ajudam, ora atrapalham quem deles é dependente.
Dados divulgados pela Organização Mundial da Saúde apontam que a cada 5 segundos uma pessoa se torna cega no mundo. Os números também indicam a existência de 40 a 45 milhões de casos; 90% deles em países emergentes ou subdesenvolvidos; e 80% poderiam ser evitados. Segundo o Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, de 2010, mais de 35 milhões de brasileiros têm algum tipo de deficiência visual. Dos números apontados, aproximadamente meio milhão de pessoas são totalmente incapazes de enxergar. Em Porto Alegre, os números indicam que pelo menos seis mil pessoas têm cegueira total.
Apesar do índice considerável de deficientes visuais ao redor do mundo, a impressão dominante é de que não existe uma consensual preocupação com o bem-estar dos cidadãos que vivem em tais condições. Quando surge em meio à política, a acessibilidade parece apenas uma “pauta positiva” diante das denúncias cada vez mais recorrentes. E contando com esse panorama, onde alguns cegos ainda ousam sair às ruas, outros resistem entre quatro paredes.


Na imagem acima, o autor do texto, Jônatha Bittencourt, em frente à Casa Lar do Cego Idoso
Na foto, um jovem magro, de camisa xadrez preta, calça jeans e uma pasta cuja alça está atravessada em diagonal em seu peito, segura um objeto de papel em sua mão direita. Ele está no centro da foto, em primeiro plano. Atrás, há um prédio cor de rosa e branco, com os letreiros em cor preta "Casa lar do cego idoso". Na entrada do prédio há uma calçada de concreto, e à direita do jovem há um caminho de piso tátil até a porta de entrada do prédio.


Rua Braille, número 480. Esse é o endereço da Casa Lar do Cego Idoso, instalada no bairro Rubem Berta, na zona norte de Porto Alegre. No local, cerca de 40 pessoas com mais de 60 anos de idade são acolhidas. Dentre as pessoas que se dedicam a levar assistência e conforto aos moradores, estão Joanete e Niderauer.
História Viva
Joanete Pretto Zanandrea, 58 anos, tesoureira. Niderauer Pacheco de Quadros, 87 anos, tesoureiro. Na sala do departamento, no térreo da casa de dois andares, eles falam do trabalho com muito entusiasmo. Quando um para, o outro continua dando cada vez mais fôlego à conversa, que compete com o barulho das obras que estão sendo feitas no local – recém haviam chegado recursos do governo municipal.
A história do estabelecimento teve início há 40 anos, antes mesmo da sua fundação. Em maio de 1973, um grupo de cegos descontentes com a política de atendimento aos deficientes visuais no Rio Grande do Sul e com a falta de atividades esportivas para eles resolveram fundar a Sociedade Esportiva Louis Braille (SELB). “Nós tivemos diversos troféus”, destaca Niderauer. “Levamos vários títulos de futebol de salão e atletismo.”
Dez anos depois, a SELB passou a se chamar SOLB, de Sociedade Louis Braille. Perdeu a letra E, de Esportiva, que justamente motivou sua criação. Mal sabiam o que lhes esperava. Uma longa jornada na área social se estenderia pela frente.
Com a formação de um novo estatuto, em 1998, o nome da entidade mudaria para Associação de Cegos Louis Braille (ACELB). Cientes de que não seria fácil, mas que era necessário trabalhar mais pesado por uma rede de serviços que atendesse pessoas cegas idosas em situação de vulnerabilidade social, resolveram criar um setor responsável por essas demandas. Em 2000, foi inaugurada a Casa Lar do Cego Idoso, contando, inicialmente, com 12 moradores.
Joanete relata que chegou até a instituição por meio do marido. Segundo ela, por ele ser deficiente visual, os círculos sociais do casal passaram a ser, principalmente, pessoas cegas. Considerando o quadro em que se encontrava a militância pelos direitos das pessoas com deficiência, Joanete percebeu a necessidade de se engajar no projeto. Hoje, só lamenta pela falta de circular mais entre os moradores da casa, como fazia antigamente. “Passo mais tempo aqui, na sala da tesouraria, só lidando com números. Sinto falta lá de cima”, diz Joanete.
Enquanto ela conclui seu raciocínio, dá para notar que Niderauer já aguarda a vez de falar. Ele foi um dos fundadores da associação. Tem muita história para contar.
Sou aposentado. Fiz parte da diretoria de uma cooperativa de crédito. Naquela época, eu administrava a parte de empréstimos e cheguei a colaborar com cegos carentes. Além disso, sou membro, há muito tempo, da Irmandade São Miguel e Almas. Essa organização auxiliou desde o início a Associação de Cegos Louis Braille.”
Os dois destacam que, nesses 13 anos de funcionamento do asilo, passaram por muitas experiências. Uma delas insiste em se repetir. A indiferença parece resistir ao tempo.
Algumas pessoas têm familiares aqui. Às vezes, ligamos para avisar que estão no hospital porque passaram mal e que precisam ser visitados, mas recebemos como resposta: “Eu não vou atrás dele, já está na hora de morrer mesmo”, desabafa Joanete. “Infelizmente, alguns chegam ao ponto de dizer isso. São pessoas que abandonaram completamente seus parentes.”
Diante de situações como essa, o desânimo passa a ser um dos maiores inimigos dos que moram na casa. O sentimento, inclusive, toma uma certa vantagem por não existir um serviço de acompanhamento psicológico no local. “Eu acredito que se tivéssemos uma psicóloga aqui, ela teria muito trabalho”, diz Joanete, “muitas vezes não falam, mas no fundo estão precisando”. As dificuldades para a contratação de uma psicóloga decorrem das verbas governamentais, que “estão mais direcionadas às benfeitorias do lugar”, como destaca Niderauer.
Em meio à conversa com os dois tesoureiros, chega à porta um homem de avançada idade vestido ao estilo camponês, segurando nas mãos uma sacola com veneno para formigas.
Um Jardineiro Revolucionário


Na imagem acima, Sr. Adão Alcides Zanandrea
Um senhor, com chapéu preto e roupa cinza está posando para a foto, de frente para a câmera, no canto esquerdo da imagem. Ele segura uma pequena sacola branca. Atrás dele, uma grande estante de madeira escura, antiga, ocupa todo o fundo da foto. Na estante há muitos livros e porta-retratos.

É o marido de Joanete, Adão Alcides Zanandrea, 75 anos, ex-presidente da ACELB e, atualmente, conselheiro estadual da Saúde e dos Direitos das Pessoas Deficientes. Ele só enxerga com o olho direito – e apenas 9%.
Era o presidente e o jardineiro da casa”, interrompe Niderauer fazendo uma piada. Os três caem na gargalhada. Adão aproveita a brincadeira do amigo e já faz a seguinte recomendação, todo orgulhoso: “Pois vá ver minhas bananeiras no pátio! Certo dia meu sogro me disse: “Onde não dá geada, o colono planta três pés de bananeira e, após três anos, vai colher bananas que durarão um bom tempo para uma família de cinco pessoas”. Há dois anos, no mês de março, colhemos 70 cachos!” A esposa e seu colega tesoureiro não contestaram. Ele parece ter aprendido, realmente, a lição do sogro.
Mas ele é mais que um jardineiro.
Mesmo enfrentando dificuldades por causa da visão, resolveu cursar Direito. Registrava as aulas em um gravador de som, depois escutava as fitas. Caso não tivesse como gravar em um determinado dia, pedia emprestado o caderno dos colegas. Em casa, Joanete lia e assim ele estudava.
Eu gravava tudo em áudio e até traduzia para o Braille. Mas nunca comprei livros,” comenta Adão. Na época, adquirir obras em Braille custava muito caro – mais do que atualmente.
Depois da colação de grau, deu início à carreira de advogado. Com o passar dos anos, começou a dar aulas e a trabalhar no Ministério do Trabalho, atendendo na área previdenciária. Ainda hoje, Adão Zanandrea recebe homenagens pela sua militância a favor dos deficientes visuais. Pelo amplo conhecimento jurídico, foi convidado diversas vezes a Brasília, Rio de Janeiro e outras cidades brasileiras para colaborar no planejamento de uma legislação que contemplasse as questões de acessibilidade e direitos humanos em torno da deficiência visual. “Eu ajudei a escrever essas leis. Tenho até hoje os documentos de agradecimento lá do Rio de Janeiro”, diz orgulhosamente.
Seu antigo local de trabalho em Porto Alegre, a agência do Sistema Nacional de Emprego (SINE), também foi palco de revolução. Lá, durante 18 anos, atuou como o único deficiente visual, passando de estagiário a professor. “Até que um dia nós, mais de duzentos deficientes na cidade, entramos no Palácio Piratini e exigimos do governador os nossos direitos.”
Em 1981, no Ano Internacional das Pessoas Deficientes, o então ministro da Previdência do país, Jair Soares, anunciou sua candidatura ao governo do estado do Rio Grande do Sul. Percebendo que o governador gaúcho do momento, José Augusto Amaral de Souza, encontrava-se em risco e disposto a abrir concessões para se manter no cargo, os manifestantes aproveitaram a oportunidade para protestar. Naquele dia, foram prometidas centenas de vagas para deficientes em todo o estado.
Eu estava a dois palmos do governador. Lembro-me de ouvir dizendo: ‘Vamos começar a contratar. Estou determinando!’ Chegaram a fazer reclamações contra alguns secretários, mas o governador Amaral respondeu: ‘Secretários são pagos para me ajudar administrar o Estado. Contratem! Estou determinando!’”
Antes de sair para o pátio com sua sacola, despediu-se dizendo: “Na tua reportagem, não se esquece de dizer para as pessoas virem conhecer esse lugar e tomarem conhecimento do que uma obra assistencial de promoção humana pode fazer”.
Ao sair da tesouraria, meu próximo passo foi subir ao primeiro andar, acompanhado por Joanete. No local, além de dormitórios e de um “fumódromo”, existe uma sala com assentos onde parte dos idosos gosta de passar o dia.
Solidão e Resistência


Dona Catarina segurando a mão de Jônatha
Na foto acima, uma senhora idosa, com cabelos grisalhos e um gorro de lã cinza segura, com as duas mãos, a mão de uma terceira pessoa. Reconhecemos que é de Jônatha, o autor do texto, porque é possível visualizar a manga xadrez de sua camisa. Os olhos da idosa estão fechados, e ela está com a cabeça levemente inclinada para a esquerda.

Sentada em uma das poltronas, Catarina Gonçalves de Oliveira, de 76 anos, se concentra em seu crochê colorido. Apesar da cegueira total, faz a peça de roupa com as próprias mãos. Peço licença e um pouco do seu tempo. Ela retribui com alegria à ideia de ser entrevistada. Dona Catarina aproveita para pegar uma das minhas mãos e, esquentando-a, “segurar” a companhia por mais tempo.
Ela explica que o crochê faz parte da sua vida há anos e é uma das formas de vencer a depressão. “Eu já fazia isso quando enxergava um pouco. E agora não posso ficar mais parada, meu anjo. Sinto um sufoco e um mal estar quando não faço nada. A gente fica tão desnorteada quando perde a visão…”
Tudo começou quando eu era pequenininha, com quatro anos”, explica, “estava com meu irmão, que era muito arteiro na época. Um militar que estava passeando com seu cavalo gordo deixou cair um cartucho de dinamite perto de nós. Curioso, meu irmão foi pegar a bomba no chão. Ela explodiu. O cavalo levou um susto tão grande que levaram umas duas semanas para achá-lo”.
O acidente fez com que dona Catarina, ainda menina, perdesse 95% da visão.
Depois de um tempo, fui diagnosticada com catarata. Precisei ir à Santa Casa. Daí chegou o doutor mais experiente e me disse: ‘Catarina, tem que operar com urgência senão vai perder as vistas!’ O problema é que fizeram com anestesia geral, quando era para ser local. Antes eu pelo menos enxergava a luz, os degraus das escadas…”
Após essas palavras, dona Catarina voltou a contar sua história do início mais umas três vezes. Talvez pela idade. Resolvi não questioná-la mais sobre as causas da cegueira.
Tenho dois filhos, faz tempo que não me visitam. O Daniel não vem há mais de um ano.” Ela parece ter criado uma espécie de resistência a esse sofrimento. Apesar de fazer questão de dizer que não recebe visitas, destaca: “Mas nem conto mais com isso, não dou bola. Eles têm a vida deles. Precisamos pensar em nós mesmos, não nos parentes, e esperar a morte chegar, né?” Ela ri.
De repente cegos
Na mesma sala onde dona Catarina se dedica ao seu crochê, Osvaldo Ferraz escuta televisão. “Não posso ler ou assistir à TV, então só ouço notícias e futebol”, explica. O homem de 80 anos de idade perdeu completamente a visão há 10 anos.
Se eu mais ou menos imaginasse”, suspira, “não teria deixado acontecer. Deitei enxergando e acordei cego”. Tudo por causa de um glaucoma, doença que se caracteriza pelo aumento gradual da pressão dentro dos olhos. Com isso, o nervo ótico, responsável por transportar as sensações visuais para o cérebro, tende a sofrer uma lesão. No caso de Osvaldo, total.
Por mais que receba, em média, duas visitas por mês, Osvaldo Ferraz sente no peito a angústia de viver no mundo da escuridão. “Isso deprime a gente”, afirma. As amizades dentro de casa servem de estímulo para o dia-a-dia. “Conhece o Niderauer? Andando com ele, tá com tudo…”
Depois de conhecer Osvaldo, fui conduzido por Joanete a um dos quartos do asilo. Em uma cama estava um homem que, em plena juventude, foi desafiado por uma raríssima doença chamada Paget. Os especialistas afirmam que apenas 5% a 30% dos casos são sintomáticos. Os demais pacientes só descobrem a doença durante exames mais específicos ou, como no caso de Alenir Moraes da Silva, de 61 anos, através das consequências.
Por volta dos 20 anos de idade, a vida de Alenir mudou drasticamente.
Eu era bastante ativo na época, trabalhava no campo”, afirmou. “A doença de Paget apareceu de repente e eu perdi a visão. Foi bastante difícil. Ninguém sabia de nada, como lidar ou não com isso.”
Ainda assim, resolveu seguir em frente. “Procurei minha independência”, declara. Além de trabalhar em empresas da capital, participou da direção de algumas entidades que apoiam deficientes visuais. Em Porto Alegre, viveu a dura realidade de uma cidade que, como a maioria ao redor do mundo, ainda está distante do ideal quando se trata de acessibilidade.
A cidade não está preparada. Na verdade, uma sociedade preparada para conviver e até entender a dinâmica de um deficiente visual não existe no mundo inteiro, viu? As barreiras arquitetônicas são imensas.”
Uma declaração que, por vezes, parece ser ignorada. Fazendo o uso contextualizado do conhecido ditado popular, a impressão que fica é que onde há cego, quem enxerga é rei. Mais do que isso, quem enxerga dita as regras de como ver o mundo.
Embora exista a imposição de limites que deveriam ser repensados, Alenir Moraes da Silva declara viver “uma vida normal. Ela já é feita de altos e baixos, de coisas boas e ruins. Ser cego é apenas um detalhe. Mesmo assim, a pessoa pode ser capaz de se adaptar e de se esquecer, muitas vezes, da própria condição de cega”, conclui.
Alenir foi o último morador que conheci na Casa Lar do Cego Idoso – que prometi a mim mesmo visitar mais vezes. Antes de ir embora, ainda passei pelo jardim de Adão.
Saí decidido a conhecer mais pessoas e lições de vida.

Construindo Rampas
Esta jovem de 27 anos tem deficiência visual parcial (baixa visão) desde o nascimento. Enxerga apenas 10% e como se estivesse usando um binóculo – não tem a percepção lateral, periférica. Para começar a ver algo, precisa estar a, no máximo, dois metros de distância, quanto mais iluminação melhor. No computador, utiliza fontes que variam de 22 a 24 pontos. Além disso, é jornalista formada.
Você deve estar imaginando: “Essa pessoa deve ser uma grande profissional de rádio, afinal de contas, deficientes visuais não desenvolvem com facilidade os outros sentidos? Trabalhar com a audição deve ser o seu forte!” Deixe-se surpreender: estamos nos referindo a uma apresentadora de televisão. Seu nome é Mariana Baierle, jornalista pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e mestre em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Nunca imaginei que seria telejornalista, era uma das áreas pelas quais eu menos me interessava na época da universidade. Até que um dia prestei um concurso temporário para a TVE-RS e, inclusive, passei no acesso universal. Fiquei toda orgulhosa por ter me classificado. Quando entrei, houve certa resistência, não sabiam o que fazer comigo.”
Hoje, Mariana é repórter e apresentadora do quadro Acessibilidade dentro do programa Cidadania. Apesar das dificuldades enfrentadas inicialmente, com o tempo passou a usar algumas situações a seu favor. Em filmagens na rua, por exemplo, consegue se concentrar ao se dirigir à câmera. Já que não enxerga perifericamente, não se preocupa se alguém a está assistindo.
Mas nem tudo é motivo de tranquilidade. O luto e a contestação são “pautas” permanentes na vida Mariana. Apesar de viver em um país onde os direitos humanos são, supostamente, prioridade, ela acredita que a questão ainda é tratada com superficialidade.
Gosto de fazer uso de uma frase da publicitária Juliana Carvalho, cadeirante: ‘É preciso construir rampas na cabeça das pessoas’. E é bem isso, mudar um pensamento, um comportamento. Não é só a rampa que vai dar acesso, mas as pessoas, a forma de atender e lidar com naturalidade. Alguns ainda têm aquela ideia: ‘Nossa! Aquele é deficiente, está vendo? Está vindo ao teatro, ao cinema, como é que pode? Está saindo de casa!’ Ainda existe, infelizmente, essa resistência. Por isso existe a necessidade de ‘construir rampas’ num sentido bem mais amplo, de transformação cultural.”
Dentre vários preconceitos que deveriam ser colocados em xeque nos nossos dias, um ainda intriga muita gente: “O que esse tipo de pessoa vai fazer em Paris se não pode ver a Torre Eiffel? Qual a importância de ir a Roma sem enxergar o Coliseu?” Diante desse tipo de pensamento, Mariana contra-ataca: “Não é bem assim! O que vale é a sensação de interagir com as pessoas, caminhar pela cidade, tirar fotos…” Tirar fotos? “Sim, vão tirar, querer uma recordação. Depois os outros descrevem as imagens coletadas! Isso acontece por meio da audiodescrição, um método de trazer acessibilidade nessas situações.”
Confesso que fiquei um tanto surpreso com essa ferramenta de “visualização”. Vale a pena destacar que a jornalista Mariana Baierle tem um blog chamado Três Gotinhas (www.tresgotinhas.com.br). Na sua página pessoal, ela explica o porquê do nome: “Acho que três gotinhas é uma boa conta, considerando que às vezes posso colocar a mais ou a menos (e não ficarei sabendo disso). Então a tentativa de sempre colocar três gotinhas me parece uma boa média.” Ali, Mariana registra as mais diversas experiências vivenciadas, que vão desde a simples imaginações e conversas a grandes viagens.
Falando em viagens…
Nem só olhos visualizam
Estou a menos de uma semana na Alemanha e já são tantas as coisas para contar que fica difícil entrar em detalhes, mas posso dizer que foram, por enquanto, os dias mais difíceis da minha vida.” (16/09/2012)
O autor dessas palavras se chama Lucas Radaelli, um jovem de 21 anos de idade, estudante de Ciências da Computação na Universidade Federal do Paraná. Assim como Mariana, ele tem um blog na internet (www.lucasradaelli.com) e é deficiente visual. No entanto, é cego. Para chegar à Alemanha, Lucas precisou superar algumas barreiras durante os anos de estudos. Ele relata que a partir da terceira série, passou a estudar mais de forma digital. Os livros eram escaneados pelos pais e “lidos” através de softwares em seu computador. O Braille servia como ferramenta apoio.
Já na universidade, participou de um processo seletivo por uma única bolsa destinada ao setor de Exatas, que englobava Ciências da Computação, Tecnologia da Informação, Física, Matemática, as engenharias etc. Passou por uma série de provas, como de idioma do país de destino, rendimento acadêmico, histórico escolar, iniciação científica e atividades extracurriculares. No final das contas, foi selecionado. Embarcou para a Alemanha. “O início foi mais difícil. Como eu não tinha amigos ainda ficava sem ajuda para algumas coisas. Precisei ultrapassar os meus limites para resolver esses problemas”, comenta. Além de visitar o país germânico com fins acadêmicos, Lucas revela sua paixão por viagens e destaca algumas das suas memórias. “Sempre pesquiso bastante para onde quero ir. Já fiz viagens frustrantes, onde só havia apelo visual. Mas já viajei para lugares dos quais gostei muito, como Dublin, na Irlanda. Havia muitos pubs com música tradicional. Lógico que a visão deve ser bastante importante, mas ainda existe a questão da culinária, dá para sentir o ambiente. Quando fui ao Museu Britânico, em Londres, passei por uma experiência muito legal porque era permitido tocar em várias estátuas egípcias. Nossa, visualizei várias estátuas.”
Já que conversamos sobre “aparências”, resolvi questioná-lo sobre conceitos de estética, beleza. Lucas destacou que faz uso de outros padrões. “Como aconteceu quando um amigo me mostrou dois celulares e perguntou qual deles eu havia gostado mais. Respondi indicando um. Ele quis saber o porquê. Falei que preferi pela traseira de metal porque me passava uma sensação melhor por ser gelado…”
Eu não tenho noção do que é uma cor. Então discussão sobre cores de pele é algo que não entra na minha cabeça”, ressalta. “Certa vez aconteceu uma situação engraçada envolvendo um amigo – eu acho que é negro, não tenho certeza. Ele estava bem ranzinza na parte da manhã e eu disse que ele estava parecendo muito alemão naquele dia. Todos meus amigos deram risada. Era bem no começo do nosso convívio. Por um tempo o chamamos de alemão.”
Assim encerrei a conversa, ciente de que para Lucas, preto e branco eram a mesma coisa.

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